A distribuição do espaço urbano e a bicicleta na disputa pela cidade | Parte 3 de 3
Por Luis Fernando Villaça Meyer, Diretor de Operações do Instituto Cordial
Esta é a parte final de uma publicação dividida em 3 partes (Leia a parte 1 aqui, e a parte 2 aqui). Nas partes anteriores, foram discutidos os desafios enfrentados pelos usuários de diversos meios de transporte — principalmente os de mobilidade ativa, como os ciclistas e pedestres — para conquistar um espaço seguro de deslocamento na cidade de São Paulo, onde automóveis ainda dominam o espaço viário.
Além disso, foi apresentado o primeiro resultado da trilogia de estudos que o Instituto Cordial realizou entre 2021 e 2022 em parceria com o Movimento Inovação Digital — MID, intitulado “Distribuição do espaço e deslocamentos em São Paulo: uma análise da infraestrutura, viagens e segurança viária na cidade”. Nesta parte 3 da publicação, serão apresentados o segundo e o terceiro estudos da série. Ambos analisam a distribuição do espaço urbano na cidade de São Paulo: o segundo estima o espaço de leito carroçável que pode ser considerado excedente, e o terceiro calcula o espaço ocupado por estacionamentos em meio-fio. Os estudos completos estão disponíveis na página do Painel Brasileiro da Mobilidade no site do Instituto Cordial e no site da MID.
Potencial de ampliação do espaço público para as pessoas
Análise do leito carroçável excedente na cidade de São Paulo
O segundo estudo da trilogia buscou aproximar as análises das características específicas das ruas e tinha como objetivo estimar o potencial de ampliação do espaço público urbano por meio da identificação do leito carroçável excedente. Foram calculadas as variáveis de largura do leito carroçável¹, largura da calçada e número de faixas de tráfego em cada um dos meios-de-quadra² da cidade. Também foram considerados os parâmetros-chave de largura mínima de faixa de ônibus (3,2 metros), faixa de tráfego geral (3,0 metros), infraestrutura cicloviária (2,0 metros) e largura mínima calçada aceitável (2,0 metros).
Partindo destas variáveis, dos parâmetros estabelecidos e dos resultados do estudo anterior, buscou-se estimar quanto espaço estaria disponível para outros usos na via caso as faixas de rolamento fossem adequadas aos parâmetros mínimos definidos na legislação e em manuais, resultando em um espaço “excedente” de leito carroçável. As imagens abaixo ilustram o raciocínio:
Os resultados iniciais mostraram que ao menos ⅓ da extensão dos meios-de-quadra no município tem leito carroçável excedente. A prevalência da distribuição dos meios de quadra nesta situação é heterogênea na cidade, sendo que na região central 44% dos meios de quadra têm esta característica, enquanto na região norte são apenas 27% dos casos. Importante ressaltar que não foram consideradas as demandas de carregamento nesta estimativa, uma vez que calculou-se apenas a readequação de larguras das faixas de rolamento, mantendo inalterada a quantidade de faixas destinada aos veículos.
Em área total, o espaço excedente nas vias da cidade de São Paulo soma ao menos 2.3 milhões de metros quadrados (227 hectares, ou seja, 20 vezes a área do parque Jardim da Luz, na região central) que poderiam ser destinados a outros usos. Em diversas regiões, este espaço poderia ser utilizado para receber novas infraestruturas cicloviárias, entre ciclovias e ciclofaixas, dependendo do caso, incentivando o uso da bicicleta de forma segura. Em casos de excedentes viários generosos, também podem ser realizados alargamentos do passeio público para acolher de forma adequada equipamentos e serviços ao ciclista, como paraciclos, bicicletários e pontos de apoio e descanso.
Os resultados demonstram que há espaço disponível em diversas partes da cidade, mesmo sem reduzir o número de faixas de rolamento destinadas aos veículos, ou seja, sem mudar o paradigma de mobilidade vigente. Mesmo assim, os impactos da adequação de uso destes espaços podem ser muito significativos e transformadores para uma mobilidade mais sustentável, incentivando o uso da bicicleta. Os resultados também dão bons indícios de que há ainda mais espaço excedente caso faixas de rolamento tenham efetivamente seu uso alterado e destinado a outras finalidades relacionadas com a mobilidade — como a implantação de paraciclos ou criação de áreas verdes.
Análise do estacionamento em meio-fio na cidade de São Paulo
A partir dos resultados obtidos no estudo anterior, e desdobrando sua análise, o terceiro estudo buscou estimar o potencial de ampliação do espaço público urbano por meio da identificação do estacionamento em via pública considerado excedente. Quanto à oferta de espaço, estimou-se a variável de vagas existentes de estacionamento no meio-fio por meio-de-quadra e utilizou-se o parâmetro chave de dimensão de vaga de estacionamento de 2,5m por 6m, numa medida conservadora de acordo com a literatura³. Para estimar a demanda de vagas, calculou-se a quantidade de viagens de automóvel com estacionamento em meio-fio e sua duração a partir de dados da pesquisa Origem e Destino do Metrô de São Paulo de 2017.
Os resultados indicam que há maior disponibilidade de vagas nos distritos de fora da área central, com uma média de 79 vagas por quilômetro de via, chegando a mais de 100 em distritos como Butantã (Zona Oeste) e Vila Matilde (Zona Leste) e a menos de 60 em distritos como a República (Centro). É interessante relembrar que a área central de São Paulo possui características muito distintas das áreas periféricas, com maior disponibilidade de empregos e maior volume de tráfego, mas também maior oferta de transporte coletivo, entre ônibus, trens e metrôs, o que ameniza a demanda por estacionamento no meio-fio.
O modelo estatístico de comparação da estimativa de oferta de vagas com a demanda de estacionamento em meio-fio indicou um total de mais de 84 mil vagas excedentes na cidade, somando aproximadamente 1,3 milhão de metros quadrados de espaço (comparável ao tamanho do Parque Ibirapuera) que pode ser destinado a outras finalidades. Há distritos com até 45% de vagas excedentes, como é o caso do Campo Limpo e do Jardim São Luís, ambos na Zona Sul.
Novamente, o estudo partiu de uma abordagem conservadora e não considerou substituições modais, apenas uma distribuição mais eficiente do espaço público de acordo com a demanda atual de vagas em meio-fio. Ao mesmo tempo, também não está sendo problematizado o estacionamento gratuito de veículos privados no espaço público sem contrapartida. Os resultados das estimativas podem ser ainda muito maiores de acordo com a abordagem assumida na análise.
Na perspectiva das cidades para pessoas — priorizando espaços para mobilidade ativa e encontro social, fomentando outras formas de deslocamento, substituições modais e outras localidades para estacionamento de veículos privados –, pode-se supor que a quantidade de vagas excedentes seria muito maior. Este espaço tem grande valor social, podendo ser melhor utilizado e distribuído. Há um grande debate sobre a substituição de vagas para automóveis por outros usos, como parklets, alargamentos locais de calçada para incorporar mobiliário, vegetação urbana e estações de bicicletas compartilhadas, dentre outras.
Uma outra cidade é possível
Os dois estudos encontraram ao menos 3,6 milhões de metros quadrados de espaço de leito carroçável que podem ser melhor aproveitados na cidade de São Paulo e destinados a outros usos, o equivalente a 2,5 vezes o Parque do Ibirapuera. O espaço disponível será ainda maior se buscarmos cada vez mais mudar o paradigma de desenvolvimento urbano e de distribuição do espaço público, priorizando as pessoas. Para além disso, é preciso saber e considerar que os diferentes históricos de urbanização dos distritos da cidade colocam desafios específicos em cada um deles nessa mudança de paradigma.
As cidades se desenvolveram carregando prioridades invertidas e vícios de origem, mas é necessário e justo redistribuir o espaço urbano. É preciso seguir alterando convicções e supostas verdades estabelecidas, compreendendo melhor a realidade para melhor intervir. A Prefeitura de São Paulo vem gradualmente realizando intervenções desta natureza já há vários anos, por exemplo, ampliando a oferta de infraestrutura cicloviária, e a rede de bicicletas compartilhadas, implementando seu plano de segurança viária com base na abordagem dos Sistemas Seguros, reduzindo as velocidades máximas permitidas nas vias arteriais, dentre outras medidas. Mas a cidade ainda precisa de outras ações.
É preciso inovar e agir de forma coordenada, compartilhando responsabilidades com base em políticas públicas bem embasadas em dados e evidências, conhecendo e considerando as realidades e desafios locais. Não é possível pensar a cidade do futuro sem conhecer profundamente a cidade do presente. Novos elementos de infraestrutura, inovações em segurança viária e serviços urbanos devem levar em conta estes desafios. Para o sucesso da bicicleta e de outros modos ativos na disputa pelo espaço urbano, é preciso que se pense a cidade de uma nova forma, com novas referências e novos paradigmas, para que nossas cidades se desenvolvam para serem mais justas, seguras e sustentáveis.
Link para a parte 1 da publicação aqui.
Link para a parte 2 da publicação aqui.
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¹ Entende-se “leito carroçável” como o espaço da pista, conceitualizada no CTB como a “parte da via normalmente utilizada para a circulação de veículos, identificada por elementos separadores ou por diferença de nível em relação às calçadas, ilhas ou aos canteiros centrais” (CTB, Anexo I).
² Segundo metodologia desenvolvida pelo Instituto Cordial, o meio-de-quadra é o espaço do sistema viário em que não está localizada na área de influência de um cruzamento. Ou seja, corresponde às ruas e avenidas, porém, sem considerar as áreas de cruzamento entre 2 ou mais vias.
³ Na ausência de uma base de dados municipal sobre disponibilidade de vagas, foram realizadas estimativas de acordo com características de cada meio-de-quadra, como largura, hierarquia viária, presença de infraestrutura de transporte coletivo, etc.