A distribuição do espaço urbano e a bicicleta na disputa pela cidade | Parte 2 de 3

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5 min readFeb 9, 2023

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Por Luis Fernando Villaça Meyer, Diretor de Operações do Instituto Cordial¹

Discutimos na parte 1 desta publicação sobre como as cidades brasileiras se desenvolveram tendo o automóvel particular como protagonista das ruas e vencendo, em grande medida, a disputa pela distribuição do espaço urbano. Enquanto a maioria das cidades brasileiras parece ter se desenvolvido de forma caótica, o paradigma do asfalto para os automóveis foi incorporado, naturalizado e reproduzido com muito sucesso. Mas os tempos são outros e temos assistido a uma mudança significativa no ideal de cidade que queremos, como sociedade, construir. Outros modos de transporte, dos coletivos aos ativos individuais, vem ganhando força nessa disputa, dentre os quais a bicicleta se destaca.

A partir dessa problemática, o Instituto Cordial desenvolveu entre 2021 e 2022 uma trilogia de estudos em parceria com o Movimento Inovação Digital — MID, buscando ampliar e aprofundar a compreensão sobre a distribuição de espaços públicos, a forma da infraestrutura viária e as dinâmicas de mobilidade na cidade de São Paulo. Nesta parte 2 da publicação, serão apresentados os principais resultados do primeiro estudo da série: “Distribuição do espaço e deslocamentos em São Paulo: uma análise da infraestrutura, viagens e segurança viária na cidade”, cujo texto completo está disponível na página do Painel Brasileiro da Mobilidade no site do Instituto Cordial e no site da MID.

Distribuição do espaço e deslocamentos em São Paulo

O estudo buscou analisar e comparar as distribuições de infraestrutura, viagens e segurança viária entre os 96 distritos da cidade de São Paulo, partindo de indicadores da ONU-Habitat. De acordo com a organização, a distribuição dos espaços e a conectividade de ruas são fatores que ajudam a explicar a prosperidade de uma cidade. Diz que sistemas de vias mais densos e conectados estão entre as características de cidades mais prósperas, comparando diversos exemplos do mundo pelo seu Índice de Conectividade de Ruas.

Analisando, de forma inédita, os distritos da cidade de São Paulo com este índice, o estudo demonstrou que, mesmo que as ruas dos distritos centrais sejam habitualmente mais largas, o indicador Terra Alocada para Ruas (LAS²), que calcula a proporção da superfície pública da cidade ocupada pelas ruas, possui patamares médios a altos também em distritos de fora do centro, onde as ruas são mais estreitas. O indicador pode levar a supor que há espaço disponível para o adequado compartilhamento da via por ciclistas com outros veículos ou, ainda, para acomodar intervenções como infraestrutura dedicada e redesenho para segurança viária, mas este indicador em si não diz tudo sobre as oportunidades de intervenção nestes locais.

Figura 1. Exemplo de rua típica com pista e calçada estreita em distrito de fora do centro da cidade. Fonte: Google Street View.

O estudo também demonstrou que o indicador “Densidade de Interseções” (SID³) é mais alto em distritos periféricos, especialmente na Zona Leste da cidade, características que podem ser explicadas por seus históricos de urbanização e perfis de loteamento, resultando em grande densidade de vias e cruzamentos, mas com predomínio de ruas estreitas que desembocam em grandes vias arteriais com infraestrutura de transporte coletivo, como a Radial Leste.

Entretanto, enquanto pode parecer que não falta espaço e que há boa conectividade de acordo com os indicadores, em boa parte dos distritos isso não necessariamente se reverte em uma cidade com melhores condições e com distribuições de espaço mais adequadas e justas. Em outras palavras, não é apenas o espaço em si e a quantidade de cruzamentos que importam, mas outras características das ruas, como sua largura, seus usos e a alocação deste espaço, também são relevantes.

Figura 2. Densidade de interseções (SID) por distrito. Fonte: Instituto Cordial, 2021. / Figura 3. Terra alocada para ruas (LAS) por distrito. Fonte: Instituto Cordial, 2021.
Figura 4. Largura mediana da calçada por distrito. Fonte: Instituto Cordial, 2021. / Figura 5. Largura mediana do leito carroçável (pista) por distrito. Fonte: Instituto Cordial, 2021.

Outra questão urbana que sempre vai estar relacionada com a distribuição dos espaços da cidade é a segurança viária. Enquanto a maior parte dos empregos e deslocamentos se concentram nos distritos centrais, onde há ruas mais largas, seria razoável supor que neles também se concentram mais sinistros de trânsito. Ainda mais quando se observa que a distribuição de sinistros não é homogênea na cidade: dos mais de 124 mil sinistros ocorridos entre 2013 e 2019, há distritos que agregam mais de 3 mil sinistros enquanto outros não passam de 40.

Entretanto, a partir de simulações realizadas com os dados da Pesquisa Origem e Destino do Metrô de São Paulo para estimar a quantidade de viagens que passam por cada distrito, o estudo apresenta que há menor concentração de sinistros nos distritos do centro expandido do que fora dele. Enquanto nos distritos centrais a concentração varia de 6 a 20 sinistros para cada 100 mil viagens, no restante da cidade o indicador varia de 9 a 38. Essa relação é especialmente notável entre automóveis e motocicletas, mas não tão clara em sinistros envolvendo ciclistas, por mais que os distritos com resultados mais críticos também estejam fora do centro expandido.

Figura 6. Motocicletas envolvidas em sinistros por milhão de viagens, por distrito. Fonte: Instituto Cordial, 2021. / Figura 7. Bicicletas envolvidas em sinistros por milhão de viagens, por distrito. Fonte: Instituto Cordial, 2021.

Ruas e calçadas estreitas, grande densidade de vias e de cruzamentos e concentrações consideráveis de sinistros para cada 100 mil viagens deixam claro como os desafios de mobilidade urbana e segurança viária são distintos entre os distritos de São Paulo. As soluções do passado — mesmo aquelas bem sucedidas em áreas centrais — não vão resolver os novos desafios que se apresentam em outras regiões. A disputa da bicicleta e de outros modos de transporte pelo espaço urbano, na luta por um novo paradigma de cidade, carrega especificidades de lugar para lugar.

Em boa parte da cidade com ruas estreitas, há um grande desafio em implantar infraestruturas como ciclovias, ciclofaixas, paraciclos e mobiliário urbano de suporte a ciclistas sem que se altere o desenho viário de forma mais expressiva. Em parte da cidade com estas características, é necessário encontrar soluções inovadoras e repensar o espaço urbano de outra forma. Para se caminhar nesse sentido de forma embasada, é preciso aprofundar a análise de potencial de ampliação do espaço público para pessoas através de indicadores que considerem a largura da via e não apenas índices e indicadores espaciais.

Na terceira e última parte desta publicação, os outros dois estudos que serão apresentados fazem justamente isso: usam indicadores que consideram tanto a largura da via — com todas suas subdivisões para calçadas, pista de rolagem e etc — como o espaço ocupado por estacionamentos em meio-fio para analisar a distribuição do espaço urbano na cidade de São Paulo e para investigar possibilidades de redistribuição viária que permitam que a mobilidade urbana seja mais saudável, segura e sustentável.

Leia aqui a Parte 1 desta publicação.

Leia aqui a Parte 3 desta publicação.

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¹ O Instituto Cordial é um think and do tank independente que trabalha com ciência de dados, inteligência territorial e articulação intersetorial para fortalecer redes e basear tomadas de decisão públicas e privadas em dados e evidências. http://institutocordial.com.br/ & @institutocordial & @painelmobilidade.

² “Land Allocated to Street” (LAS).

³ “Street Intersection Density” (SID). Interseções por km2.

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