A distribuição do espaço urbano e a bicicleta na disputa pela cidade | Parte 1 de 3

Tembici
6 min readFeb 6, 2023

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Por Luis Fernando Villaça Meyer, Diretor de Operações do Instituto Cordial¹

Foto: Tembici (2022)

A ideia de cidade e o espaço em disputa

Como é a cidade que queremos viver? E como queremos nos locomover nela? Estas são perguntas recorrentes nas vozes não apenas de urbanistas, engenheiros e tomadores de decisão que trabalham com políticas urbanas e de mobilidade, mas de qualquer cidadão. Por mais que o crescimento demográfico e a urbanização tenham sido muito acelerados no século XX no Brasil, dando a impressão de falta de planejamento e de um desenvolvimento caótico, é preciso reconhecer que alguns paradigmas não apenas foram incorporados e reforçados ao longo do tempo, como são permanentemente visíveis em nossas cidades, especialmente em uma do porte e da relevância de São Paulo.

Esse desenvolvimento das cidades brasileiras sempre buscou acomodar um elemento em específico: o automóvel, símbolo antigo de velocidade, status e tecnologia, e ícone de um futuro supostamente melhor, onde as pessoas poderiam acessar mais lugares, em menos tempo e com menos esforço. Mas o automóvel precisa de um recurso específico para prosperar: espaço. E foi isso que o desenvolvimento urbano lhe entregou, por décadas, de forma muito bem sucedida e, diga-se, planejada. O que não parece faltar em nossas cidades é asfalto para automóveis — mesmo que nem sempre nas melhores condições. Os automóveis e as indústrias que os fortalecem foram (e em grande medida ainda são) tão bem sucedidos na disputa pelo espaço urbano que os olhos do cidadão percebem como natural o predomínio do automóvel nestes espaços. A cultura incorporou e normalizou essa entrega como um dado de realidade, como se a cidade fosse naturalmente assim. Vemos o espaço dos carros, mas não o enxergamos.

Mas a reprodução dessa cidade tem limites. O trânsito, a poluição, a falta de vegetação urbana, as calçadas estreitas, o tempo e a distância de deslocamento entre a residência e trabalho e a falta de segurança no trânsito parecem indicar que há algo fora do lugar. Cada vez mais essa discussão é levantada na sociedade e gradualmente o paradigma urbano é colocado em cheque, a começar pelo questionamento do automóvel particular como ideal de “vida bem sucedida”, como era antigamente. As novas gerações não lhe dão tamanho crédito e importância, valorizando mais o acesso e a facilidade de deslocamento do que a propriedade de um automóvel.

A saturação da cidade do carro vem fortalecendo a disputa pelo espaço que antes lhe era cativo e são diversos os modos de transporte, sistemas de mobilidade e usos do espaço público que entram nesta disputa. O transporte público coletivo e suas infraestruturas dedicadas devem ser reforçadas e ampliadas. Ao mesmo tempo, os pedestres, ciclistas e a mobilidade ativa deve ser priorizada, atentando-se especialmente àqueles mais vulneráveis como crianças, idosos e pessoas com mobilidade reduzida. É preciso espaço para melhores e mais largas calçadas, infraestrutura e locais de permanência. Também, a frota de motocicletas vem crescendo vigorosamente ao longo da última década, trazendo um grande desafio de segurança viária, com novos conflitos entre veículos e agravamento de fatores de risco. Além de tantos outros novos e inovadores modos de transporte e mobilidade individuais, coletivos e compartilhados que a tecnologia vem viabilizando.

A bicicleta na disputa pelo espaço

A bicicleta é um dos modos de transporte mais promissores para contribuir com essa mudança de paradigma de cidade e de mobilidade por uma série de motivos. Ela já é amplamente conhecida pela sociedade; demanda proporcionalmente baixo investimento público em infraestrutura; é versátil nos percursos, especialmente de distâncias curtas a médias, incentivando o adensamento da cidade; é uma alternativa saudável de deslocamento, contribuindo para a saúde individual e coletiva; ela colabora para combater a emergência climática global, não gerando emissões de gases; o cidadão pode lhe ter acesso com baixo custo ou por meio de sistemas cada vez mais abrangentes de compartilhamento; dentre tantos benefícios observados em diversas cidades do mundo.

Foto: Tembici (2022)

Mas, assim como todos os outros modos de transporte, a bicicleta também precisa de espaço. De acordo com o Código de Trânsito Brasileiro, “a circulação de bicicletas deverá ocorrer, quando não houver ciclovia, ciclofaixa, ou acostamento, ou quando não for possível a utilização destes, nos bordos da pista de rolamento, no mesmo sentido de circulação regulamentado para a via, com preferência sobre os veículos automotores (CTB, Art. 58)”. Ou seja, bicicletas e automóveis devem compartilhar a mesma via quando não houver vias exclusivas. Desta maneira, o ciclista coloca seu corpo no embate pelo espaço já que a disponibilidade de infraestrutura cicloviária no Brasil ainda está muito aquém de acomodá-lo com mais segurança.

De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde, mais de 1,35 milhão de pessoas perdem a vida no trânsito por ano em todo o globo, sendo a maior causa de morte de jovens entre 5 a 29 anos (OMS, 2018). No Brasil, foram quase 400 mil pessoas que perderam suas vidas no trânsito entre 2010 e 2019, segundo dados do Ministério da Saúde. Diferente do que tradicionalmente se entendia, hoje sabemos que a responsabilidade pela segurança viária não está somente nas mãos dos usuários, sejam eles ciclistas, motociclistas, motoristas ou pedestres. Trata-se de uma responsabilidade compartilhada, onde fiscalização, sinalização, engenharia e desenho viário, dentre outros fatores ligados à política pública e a ação do Estado, também têm papel fundamental.

Diversas pesquisas destacam a relação entre a característica da infraestrutura viária e a segurança de ciclistas². Por mais que em alguns contextos — como em vias menores, de pouco tráfego e de baixas velocidades — o compartilhamento da via entre carros e bikes não implique em um aumento significativo de sinistros e mortes, vias maiores e cruzamentos sem circulação segregada de bicicletas podem agravar o risco. Não à toa, quanto maior a sensação de insegurança, menos ciclistas vemos nas ruas. Ao mesmo tempo, quanto mais infraestrutura disponível, mais seguras as pessoas se sentem para pedalar, podendo buscar na bicicleta sua alternativa de deslocamento cotidiano.

Uma trilogia de estudos

A disputa pelo espaço e por um novo paradigma urbano está, portanto, não apenas relacionada ao direito à cidade, ao direito à mobilidade e à busca por cidades e ruas para pessoas, mas também na busca por uma vida urbana mais saudável, segura e sustentável. Mas, para que isso possa ser efetivamente levado a cabo em medidas práticas e melhores políticas urbanas, é essencial entender o espaço em disputa, analisando com dados e evidências as suposições e narrativas consolidadas no senso comum, permitindo entender o que hoje se vê, mas não se enxerga.

Afinal, há espaço urbano disponível para que todas as atividades realizadas nas cidades e todos os meios de transporte coexistam de forma harmônica? É preciso estudar e questionar como, para quê e para quem vamos, socialmente, (re)destinar estas superfícies. Foi a partir de questões como estas que o Instituto Cordial realizou entre 2021 e 2022 uma trilogia de estudos em parceria com o Movimento Inovação Digital — MID, buscando ampliar e aprofundar a compreensão sobre a distribuição de espaços públicos, a forma da infraestrutura viária e as dinâmicas de mobilidade na cidade de São Paulo, contribuindo para qualificar debates sobre políticas públicas, ações e intervenções voltadas à mobilidade e segurança viária.

Os objetos dos três estudos são complementares e articulados. Versam sobre todos os modos de transporte, analisando dados urbanos e de sinistros de trânsito da cidade de São Paulo em anos recentes. Metodologicamente, partem de revisão bibliográfica não exaustiva, concentrando-se especialmente no levantamento, processamento e pareamento de dados geográficos, desenvolvimento de indicadores, cartografias e análises estatísticas. Os relatórios podem ser baixados gratuitamente na página do Painel Brasileiro da Mobilidade no site do Instituto Cordial e no site da MID.

O estudo “Distribuição do espaço e deslocamentos em São Paulo: uma análise da infraestrutura, viagens e segurança viária na cidade” abre a série, seguido de dois estudos sobre o potencial de ampliação do espaço público para as pessoas: um relativo à “análise do leito carroçável excedente na cidade de São Paulo” e outro com uma “análise do estacionamento em meio-fio na cidade de São Paulo”. Os três estudos abrem possibilidades para novos debates, análises e pesquisas. Nas próximas duas publicações apresentaremos alguns dos achados de cada estudo e os relacionaremos com a discussão sobre a bicicleta na disputa pelo espaço urbano.

Confira a parte 2 desta publicação aqui.

Confira a parte 3 desta publicação aqui.

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¹ O Instituto Cordial é um think and do tank independente que trabalha com ciência de dados, inteligência territorial e articulação intersetorial para fortalecer redes e basear tomadas de decisão públicas e privadas em dados e evidências. http://institutocordial.com.br/ & @institutocordial & @painelmobilidade.

² REYNOLDS, C. C. et al. The impact of transportation infrastructure on bicycling injuries and crashes: a review of the literature. Environmental Health, v. 8, n. 1, p. 47, dez. 2009.

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